Nos saiamos todos os dias no fim da tarde. Todas as meninas. Todos os dias. E por volta de quatro e meia da tarde começava o fim da tarde. Os "meninos" voltavam do curso preparatorio à escola militar e se postavam na rua, numa brincadeira ruidosa. Anunciando sua chegada, claro, mas nos, as meninas, nao sabiamos disso. Oficialmente eles se divertiam entre eles, sem nem mesmo olhar pra nos. Oficialmente nos tinhamos terminado os deveres e estavamos conversando entre nos tranquilamente. Na rua, num trecho de rua tranquilo, onde era raro passarem carros. Os " meninos" se exibiam, gritavam, uivavam, riam alto, se empurravam, faziam mil e uma piadas, contavam casos. Nos, "as meninas", riamos, acompanhavamos o show. As vezes havia um ou outro dialogo. Havia o bonitao, por quem todas nos eramos muito pouco secretamente apaixonadas. Havia o intelectual blasé, que bancava o intelectual blasé de 17 anos e queria ser economista quando todos os outros queriam ser oficiais de marinha e o chato agressivo que nao gostava de meninas ( nem de meninos, era o chato total, além de violento). Havia o "garoto" que so tinha quinze anos. Pra esse nenhuma de nos dava bola. Nos ja tinhamos 13 anos, ora. E havia todos os outros entre os 13 e os 17 anos que, sem morarem na rua, vinham rir - era esse o grande programa - no trecho que ocupavamos entre quatro e meia e seis horas, de segunda a quinta-feira. As seis, seis e meia no maximo, todo mundo "entrava". Mesmo porque as maes dos "meninos" zelavam por que seus rebentos estudassem muito à noite. As provas da AMAM, IME e outras misteriosas siglas tinham fama de ser fogo.
E ai eu descobri outra turma, noutra rua. E entao era eu que às quatro e meia atravessava garbosamente o grupo e mudava de rua. Ganhando, claro, fama de "metida". Ia pra casa de minha nova amiga, que ja tinha quinze anos e namorado firme, era uma garota com uma classe enorme, que nao ficava sorrindo feito nos, as idiotas, mas era séria e olhava firme nos olhos das pessoas. Ela ja estava no curso Normal , no Instituto de Educaçao e, junto com uma das irmas do namorado, dava aulas particulares numa varandinha dentro da enorme casa dela. Era alias na casa dela que a coisa se passava. Ela tinha muitos irmaos e primos e todos tinham muitos amigos. Essa turma nao queria ser militar. Os "rapazes" ( "meninos" eram os da minha rua) queriam ser engenheiros ou médicos e faziam também cursinho, claro. E havia os que ja nao estudavam, que tinham concluido o "cientifico" ou o " técnico em contabilidade" e que, por necessidade de familia, ja tinham começado a trabalhar. Mas todo mundo posava de intelectual. Ali se discutia literatura, musica classica, filosofia. Bem, bem, a musica classica vinha a partir dos "classicos para dançar" de Ray Conniff e dos Single Singers. Mas vinha. O namorado de minha amiga comprava os discos com os classicos em questao em sua versao "verdadeira" e nos ficavamos ouvindo, fazendo as caras adequadas à ocasiao. A filosofia era talvez como deve ser mesmo: na raça. O dito namorado de minha amiga comprava um livro de ... digamos Schopenhauer, e começava a ler. Dai o tal livro passava de mao em mao e todo mundo interpretava como podia. Mas na maior circunspecçao. O que nao se podia era bancar o bobo alegre ( Meu pai achava muito engraçado tudo isso. Uma vez chegou em casa me dizendo que tinha encontrado meu amigo filosofo no barbeiro - pois é, no barbeiro - fazendo pose na cadeira com a cara toda ensaboada). Em literatura estavamos em Herman Hesse e os problemas relativos ao bem e ao mal. Pois é.
Desde quinta-feira começava a preparaçao do fim de semana. Onde é a festa? Alias as festas se chamavam bailes. Havia baile toda semana. Na pior das hipoteses, aos domingos havia domingueira no clube. O problema é que minha mae achava que às domingueiras eu so poderia ir depois de completar 15 anos. Mas havia os bailes excepcionais, que eram muitos, com as orquestras especiais. A esses se alguma de nos fosse proibida de ir iria direto ali do lado se enforcar. Baile da Primavera, das Flores, do Verao, do Inverno, de Abertura das Férias, de Encerramento das Férias, de Eleiçao da Rainha do Clube, de despedida da Diretoria que saia, de recepçao da que entrava...
Enfim havia baile, pelo menos um, toda semana. Na maioria das vezes em casa, cada dia na casa de um, quando se chamavam entao " brincadeira". Todos levavam discos. Os convidados levavam também os sanduiches, docinhos de leite condensado, refrigerantes ou material pra fazer cuba-libre ou umas bebidas que eu particularmente achava horrorosas, com leite condensado e sei la qual alcool. Bebidas que, misteriosamente, eram permitidas pelas familias. Por outro lado, ninguém bebia cerveja, que so fui de fato conhecer, na faculdade. As vezes uma familia nao tinha vitrola (pois é, vitrola, daquelas de armario, pesadas), a minha, por exemplo. No problem, os "rapazes" carregavam a vitrola nas costas desde, por exemplo, a casa de minha amiga até a casa onde se fazia a " brincadeira". Por outro lado, na maioria das casas nao havia espaço pra se dançar, entao os moveis tinham de ser tirados da sala e postos no corredor, na area ou na varanda, pra dar espaço.
Saber dançar era muito importante. Todos os ritmos. Havia os especialistas de cada ritmo e havia as que ensaiavam diante do espelho de tarde. Nos bailes e brincadeiras se namorava, claro, mas sobretudo se dançava muito. Literalmente o tempo inteiro, o que quer dizer que o conceito de namoro era muito diferente. A gente namorava enquanto dançava, o que faz toda a diferença. (Bem, tinha a ida e a volta, era entao que a coisa se passava mas o tempo era curto e estavamos sempre em bando. Ou quase sempre ). De modo geral, ficar uma unica musica sem dançar ja era inquietante. O que explica também o fato de que o cuba-libre nao fazia mal a ninguém. Dai a diferença das brincadeiras pros bailes nos clubes, onde havia as varandas tao temidas pelas maes. Um baile pra ser considerado bom tinha de durar até as 3 da manha . Uma festa de 15 anos também Nas casas as maes resistiam até 1h30 mais ou menos. E na manha seguinte quem chegasse às 11 na praia ja chegava tarde, mesmo porque tinhamos de voltar pra casa no maximo às 13.
Dançamos nesse ritmo durante mais ou menos dois anos. Depois todo mundo fez 15 anos e "arranjou namorado firme", outras preocupaçoes e interesses. E ja nao era mais a mesma eletricidade que corria quando chegava a noticia de que Ed Lincoln ou Severino Araujo animaria o baile, o mesmo alvoroço nas tardes de preparaçao, quando o cabelo demorava a secar, o mesmo aperto na boca do estomago quando o Casino de Sevilla dava seus primeiros acordes ou Nat "King" Cole cantava Stardust por entre os chiados da agulha.
E todo mundo estudou e todo mundo terminou o "segundo grau". Dos "meninos", so um conseguiu entrar na Aeronautica: o chato violento. Com ditadura e tudo, ou talvez exatamente por causa dela ele chegou a brigadeiro. Tudo a ver, escrito no destino. Os outros foram reprovados para as carreiras militares. Tornaram-se engenheiros. O que queria ser economista tornou-se economista. Dos "rapazes", uns formaram-se em medicina e pelo que sei, fazem brilhantes carreiras. Outros seguiram caminhos diversos. Todos se casaram, alguns varias vezes. Acho que todos tiveram filhos. Meu amigo mais querido ja olha pra nos a partir das estrelas.
Das meninas, umas casaram uma vez, outras casaram varias vezes, outras nao se casaram. Umas tiveram filhos, outras nao. Tornaram-se psicologa, quimica, nutricionista, arquiteta, economista, sociologa, funcionaria publica, donas de casa, dona de butique, artista plastica, professoras.
Muita agua rolou depois que paramos de dançar. Houve noivados e casamentos, filhos, brigas e reconciliaçoes, traiçoes, separaçoes. Houve mudanças, viagens, carreiras, doenças e mortes. A maioria melhorou de vida, houve os que ficaram ricos, alguns muito ricos, houve os que continuaram pobres. Mudamos, de cara e cabelo, mudamos de olhos e riso. Mas como disse o santo Ferreira Gullar, esse tempo esta comigo, esta, perdido em alguma gaveta.