Cheguei a Paris pela primeira vez sozinha, à noite, de trem. Peguei um táxi na Gare de Lyon e dei o endereço da amiga que me hospedaria. Sem noção de direção, fui olhando pelos vidros do carro a cidade que me aparecia sob a chuva. Atravessamos uma ponte, seguimos o cais e de repente eu vi os fundos da Notre Dame à minha direita. Senti aquele baque, claro, era o cartão postal agora na realidade. O táxi foi seguindo e eu contemplando sua lateral, suas torres. Temi me enganar. E se fosse outra igreja? Num ar falsamente cool , perguntei ao motorista qual era “aquela igreja” . Ele virou-se literalmente para trás e me perguntou entre irritado e indignado: - Mas qual igreja, Madame? Ė a catedral de Notre Dame!
Pois é, a Notre Dame tem um lugar à parte. Sobre sua arquitetura e decoração há abundante bibliografia mas mesmo sem ela o visitante se dá conta de que História e mito ali se entrecruzam, de São Luís a Napoleão ou, para os franceses, a de Gaulle, que, em 1944, na missa que celebrava a liberação de Paris, sofreu o primeiro atentado. Na parte exterior as górgonas atraem os olhos do visitante literário ( ou com filhos pequenos, que Hugo nos perdoe as oferendas que fazemos a Disney). Nesse ponto, no entanto, um certo corte no clima é dado pelas inúmeras ciganas que pedem esmolas nas vizinhanças. O próprio Victor Hugo teria dificuldade em reconhecer Esmeralda hoje em dia, tanto elas parecem ameaçadoras.
Por outro lado, outras incontáveis igrejas valem também a visita. Em cada uma delas todo mundo sabe que se pode fazer também um curso de história, de arquitetura ou de arte. Mas, sobretudo, cada uma delas tem seu clima, ou melhor, cada uma delas oferece o cenário para cada visitante criar um clima, de acordo com suas vivências, seu repertório, suas expectativas. Como por exemplo, Saint-Julien –le Pauvre, Saint Séverin e a capela da Medalha Milagrosa, todas na rive gauche.
Saint-Julian-le –Pauvre, de rito católico grego, fica quase em frente à Notre Dame. Foi construída, reza a lenda, com as pedras que sobraram na construção da catedral, em 1170. Sua fachada acabou de receber uma limpeza e ela brilha como um castelo de areia. É pequena e acolhedora com seus ícones e sua decoração interior em dourado, estranhamente bonita, quase inquietante. Nela se realizam ordinariamente concertos de música clássica e de gospell. Ao lado, dando para o cais de Montebelo, está o Jardim de Saint-Julien –le-Pauvre, onde se pode sentar calmamente para comer um sanduíche trazido de casa e admirar as flores, ler o jornal ou namorar, enquanto as crianças gastam as energias correndo em torno do chafariz. É preciso porém tomar cuidado para que elas não incomodem os (poucos) mendigos que ali vão usar seus direitos de, como cidadãos, dormir nos bancos, já que não têm casa. Se não, eles podem protestar desagradavelmente, para dizer o mínimo. Melhor é acalmá-las e fazê-las brincar sob as raízes da árvore mais velha de Paris, de 400 anos, ou mostrar-lhes o velho poço. À frente , na ilha de la Cité, ergue-se, majestosa, a Notre Dame. Na rua lateral , que se chama rue de Saint-Julien-le-Pauvre, havia até ouco tempo atrás uma loja onde se podiam alugar bicicletas. Em seu lugar hoje ha uma lojinha de souvenirs…
Pertinho temos Saint- Séverin, na rua de mesmo nome, no coração do “quartier latin” , construída entre os séculos XIII e XV. Os vitrais são famosos, os mais antigos datando do século XIV e por eles e por sua arquitetura gótica, a igreja está sempre cheia de turistas e de estudantes de arte. Como em todas as igrejas que viraram museus de fato, o lugar de culto está, de ordinário, numa capela ao fundo. Ao andar pelas naves laterais , não se pode deixar de pensar em S. Vicente de Paulo (realmente “meu tipo inesquecível”), que ali batizou inúmeras crianças encontradas nos arredores. Atualmente , à noite, também ali se dão concertos de música classica. Ao lado há também um jardim arborizado, desta vez, privativo da igreja. E nas ruas laterais encontram- se lado a lado pintores, desenhistas e fotógrafos , todos desejosos de captar sob um novo ângulo ou sob uma nova luz um detalhe de sua arquitetura ou o recorte do edifício contra o céu.
No entanto, a minha preferida é a capela da Medalha Milagrosa, um edifício novo para os padrões franceses. Data do século XIX. Fica na rue du Bac, número 140, em frente à loja de departamentos Bon Marché. O edifício é mesmo difícil de achar pois a capela não é vista da rua. No entanto, não é à toa que esse é um dos endereços mais procurados de Paris. Respira-se aí ao mesmo tempo simplicidade e transcendência, e isso independentemente de se ter ou não fé religiosa. O caminho entre a porta de entrada e a da capela mostra em quadros, a vida de Catherine Labouré, a religiosa a quem, nesse local, em 1830 a própria Virgem Maria pediu que fosse cunhada uma medalha em sua honra… O relato desse encontro, feito através de quadros na parede, é tocante e em sua simplicidade deixa em aberto sua interpretação. O fato é que chegando à luminosa capela de cores claras, com suas linhas arredondadas como um regaço maternal, se ouve ainda a voz da órfã Catherine que falava com a Virgem com a intimidade de uma filha que se sabe muito querida. Um lugar de força.