Ninguém melhor retratou Paris e os parisienses e talvez mesmo a França e os franceses que Proust. Nada, ninguém mais atual. Nenhum autor conseguiu retratar melhor o "espirito parisiense", talvez mesmo "francês", que consiste justamente em - perdao - seu conservadorismo. Nao teve maio de 68, nao teve descolonizaçao, nao ha invasao dos barbaros internos ou externos que mude isso: a sociedade francesa é palaciana, hierarquizada, cuidadosa em conservar seus usos e costumes. Dai, a maioria de seus problemas atuais, é claro a olho nu. Mas dai também sua força e seu charme, sem nenhuma duvida.
Uma amiga brasileira que esteve aqui em visita, nos ultimos 15 dias, me dizia ontem que depois de sua volta ao Brasil - ela fez seu doutorado aqui - , quando volta a Paris, frequentemente a trabalho, sempre tem a sensaçao de que os colegas franceses sao "timidos", que "nao ousam" - ela é sociologa, especializada em reinserçao social pelo trabalho. -"Sera isso mesmo ou eu é que nao estou entendendo mais?", pergunta ela.
Mas vamos a Proust . O excerto é de Sodoma e Gomorra, traduçao minha. Trata-se de uma festa na casa da Princesa de Guermantes, para a qual o narrador teme ter recebido um convite por engano e, apresentando-se à festa, dela ser expulso. Sem ter podido acalmar sua inquietaçao, ele decide-se finalmente a ir à festa e é bem recebido. Chegam os duques de Guermantes, que sao vizinhos do narrador e que se dizem seus amigos. Ora, antes da festa o narrador havia pedido a Oriana, a duquesa de Guermantes, que se informasse sobre se ele estava ou nao realmente convidado, pedido que fizera também ao duque. Nenhum dos dois quisera fazer a pergunta aos principes de Guermantes, seus primos, pois fazê-la implicaria uma recomendaçao de convite, um comprometimento.
"O duque, depois de um longo olhar com o qual durante cinco minutos arrazou sua mulher: " Contei a Oriana as duvidas que você tinha." Agora que ela via que tais duvidas nao tinham fundamento e que ela nao precisava fazer nada para tentar dissipa-las, ela declarou-as absurdas e brincou comigo longamente. "Que idéia achar que nao tinha sido convidado! Nos somos sempre convidados! E depois, você podia contar comigo! Você acha que eu nao teria podido convida-lo para uma festa em casa de minha prima?" Devo dizer que, em seguida, ela fez frequentemente coisas bem mais dificeis por mim. No entanto tomei o cuidado de nao dar a suas palavras o sentido de que eu teria sido desconfiado demais. Eu começava a conhecer o exato valor da linguagem falada ou muda da amabilidade aristocratica, amabilidade feliz por aliviar o sentimento de inferioridade daqueles sobre os quais ela se exerce mas no entanto nunca ao ponto de dissipa-lo, pois, nesse caso, ela nao teria mais razao de se exercer. " Mas você é igual a nos, se nao melhor", pareciam, por todas as suas açoes, dizer os Guermantes; e eles o diziam da maneira mais gentil que se possa imaginar, para serem amados, admirados, mas nao para que se acreditasse neles; que se pudesse compreender o carater ficcional dessa amabilidade era o que eles chamavam ser bem educado; acreditar que a amabilidade fosse real, era a ma educaçao. Recebi, alias, pouco tempo depois uma liçao que acabou de me ensinar, com a mais perfeita exatidao, a extensao e os limites de certas formas da amabilidade aristocratica. Foi numa matinée dada pela duquesa de Montmorency em honra da rainha da Inglaterra; formou-se uma espécie de pequeno cortejo para ir ao buffet e à frente estava a soberana pelo braço do duque de Guermantes. Cheguei nesse momento. Com sua mao livre, o duque me fez, ao menos a quarenta metros de distância, mil sinais, que pareciam querer dizer que eu poderia aproximar-me sem medo, que eu nao seria comido com roupa e tudo no lugar dos sanduiches. Mas eu que começava a me aperfeiçoar na linguagem das cortes, em lugar de avançar nem mesmo um passo, a meus quarenta metros de distância, me inclinei profundamente, mas sem sorrir, como faria diante de alguém que acabasse de conhecer e continuei meu caminho em sentido contrario. Se eu tivesse escrito uma obra-prima os Guermantes me teriam honrado menos que por esse cumprimento. Nao apenas ele nao passou despercebido aos olhos do duque, que no entanto, nesse dia, tivera de responder a mais de quinhentas pessoas, mas aos da duquesa que, tendo encontrado minha mae, contou-lhe o fato e, longe de dizer-lhe que eu errara e que deveria ter-me aproximado, disse-lhe que seu marido ficara maravilhado com meu cumprimento, que continha tudo o que se podia dizer em tal circunstância. Todos nao cessaram de dar a esse cumprimento todas as qualidades, sem mencionar, entretanto a que parecera a mais preciosa, a saber, que tinha ele sido discreto, e nao cessaram também de me fazer cumprimentos que eu compreendi serem menos uma recompensa pelo passado que uma indicaçao para o futuro, como aquela delicadamente fornecida a seus alunos pelo diretor de um estabelecimento de educaçao: " Nao esqueçam, caros meninos, que esses prêmios sao menos para vocês que para seus pais, a fim de que eles os matriculem de novo no proximo ano." E era assim que Madame de Marsantes, quando alguém de um mundo diferente entrava em seu meio, elogiava diante dessa pessoa as pessoas discretas " que se acham quando as procuramos e que se fazem esquecer no resto do tempo", como se previne indiretamente um empregado doméstico que cheira mal de que tomar banho é perfeito para a saude."
Proust. Sodome et Gomorrhe. Ed. présentée, établie et annotée par Antoine Compagnon. Gallimard, 1989, Folio, p. 62-63.
2 commentaires:
Sou grande admirador da obra de Proust, que alem da sua riqueza cultural e filosófica inestimáveis, apresenta muito bem esses códigos de comportamento, que você destacou observar ainda hoje na sociedade francesa. E isso me fez lembrar de Balzac, outro grande escritor francês que tão bem retratou a realidade da sociedade francesa, só que quase um século antes de Proust.
Delícia seu blog, amei Paris, fui no ano passado, sorvi cada minuto.
Tb sento os parisienses meio tímidos, diria contidos- minha amiga parisiense que me hospedou é bastante formal, preocupada com os outros, achei. Eu me sentia mto mais livre -sou de Ipanema- enfim... vc tem razão.
Contaria uma historinha aqui para ilustrar se não fosse expô-la.
Achei os aredores da Notre dame o pior lugar que estive em Paris, detestei aquele povo nas calçadas, esmolando- até dentro da Igreja havia uma freira com a mão estendida, o fim.
Abs, Laura
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