Habitar a cidade

No dia 5 de agosto, por iniciativa do vereador Vitor Junior, a Câmara Municipal de Niteroi outorgou à memoria de meu pai, Ayrton Pinto Ribeiro, a medalha João Baptista Petersen. 

A mesa foi composta pelo Presidente da  sessao, vereador Vitor Junior, pelo professor Godofredo Pinto, ex-prefeito de Niteroi,  a professora Eneida Fortuna de Barros do Valle, professora de Teoria Literaria da Universidade Federal Fluminense, pela professora Dalma Braune Portugal do Nascimento, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo Doutor Wanderlino Teixeira Leitte Neto e por mim.
Aos emocionantes discursos que sobre o homenageado fizeram os

 membros da mesa, juntou-se a comovente fala  do professor Ismail

 Vicente Ferreira, do Instituto Historico e Geografico de Niteroi ( 

ver os discursos em anexo).

Abaixo,  o texto que li em agradecimento a todos que com sua 

presença  honraram a memoria de meu pai e, nela a de todos os 

homens de letras  de Niteroi.

Palavras de agradecimento

                                                                                                                Eliana Bueno-Ribeiro

Em primeiro lugar  e em nome de nossa familia,  quero agradecer ao Vereador Vítor Júnior e  aos amigos Regina e Godofredo Pinto a generosidade  dessa homenagem à memoria de  meu pai que tanto amou esta cidade, nossa cidade.

Agradeço as boas palavras da Professora Eneida Fortuna de Barros do Valle, minha iniciadora na Teoria Literária, que generosamente acolheu-me como professora-estagiária, dando início a minha carreira; e ao  poeta Doutor Wanderlino Teixeira Leite Neto, que meu pai tanto prezava.

Agradeço a  meus amigos Dalma Nascimento ,  Izabel Cruz, Leda Dagna, Angela Bevilacqua e Leila Pereira, assim como a meus cunhados-irmãos Ana e Aloysio Vianna Santos , o precioso apoio.

Agradeço a presença do professor Maximiano de Carvalho e Silva, primeiro diretor do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense e de sua esposa Dona Dirce.

Agradeço a  presença de todos os amigos que aqui vieram dividir conosco a alegria desta rememoração. 

Creio que só  depois que perdemos um ente muito querido  compreendemos  realmente  o significado de palavras que  a maioria de nos ouviu desde a infância , sem  nelas pensar muito : «  Toda vez que dois ou mais se reunirem em meu nome eu estarei entre eles ».

 De fato, a rememoraçao coletiva de alguém tem o poder de permitir não a ressurreição que desejaríamos mas ao menos de sua presentificação.  E talvez seja  mesmo essa a principal função da memória : abolir, de uma certa maneira,  o fluxo do tempo  e instaurar o presente contínuo, com que sonhamos todos.

Assim, gostaria de dizer também algumas palavras sobre meu pai, de procurar também

presentificá-lo. Sua memória me vem juntamente com a de minha mãe, Maria do Rosário Bueno Ribeiro, com quem formou ele um casal  digamos … instrutivo: se sobre o essencial das coisas  estavam sempre de acordo, meus pais raramente concordavam  quanto à forma que seus principios deveriam tomar. Assim, em religião, em política, no comportamento a exigir das filhas,  a regra  era que discordassem, ela mais rígida, ele mais aberto e sempre conciliador.  A discussão e a composição eram as regras lá em casa.

O primeiro aspecto que gostaria de lembrar de meu pai diz respeito, portanto,  à esfera privada.  Um pai muito próximo da família, das filhas. Foi  meu grande companheiro no tempo de faculdade, meu protetor e interlocutor privilegiado durante a turbulência politica que atravessamos  durante  nossos anos de chumbo  - lembro-me de ter perdido um namorado porque nas eleições legislativas de 72 segui meu pai, votando no MDB e contrariando o movimento estudantil que fazia campanha pelo voto nulo - , meu confidente amoroso e meu  consultor acadêmico – sua biblioteca  de literatura me é útil até hoje.

                Meu pai era também muito próximo de nossa família alargada, que nesse tempo era muito grande.   Frequentava  assiduamente nao só seus irmãos mas seus cunhados  e  tinha enorme prazer com a convivência dos sobrinhos. E foi um avô enormemente presente, não de meuente tarde demais para gozar de seu amor, mas dos filhos de minha irmã.

Em segundo lugar, gostaria de lembrar seu  trajeto intelectual.

Filho de uma familia com poucos recursos, meu pai desejara ser militar – a profissão de gente pobre,  dizia ele, na qual se pode estudar com o sustento garantido desde o início.   Reprovado no exame para a Escola de Realengo, precisou  trabalhar imediatamente e entrou no serviço público, na Secretaria de Segurança Pública, por concurso público, como escrivão de polícia.

Meu pai se orgulhava de ser policial.  Orgulhava-se de ser um representante do Estado na proteção dos mais fracos – « Para isso serve a polícia » – nos dizia ele frequentemente.   Como policial percorreu todo o Estado do Rio, conhecendo todos os seus municípios e sobre eles fazendo anotações que consignava em seus cadernos.  Em termos acadêmicos, diríamos que ele aproveitava as diligências policiais para fazer o « trabalho de campo » que nutririam mais tarde sua produção.  Como policial, conheceu também  os vários estratos  sociais pelos quais transitava  com o espírito republicano de que estava imbuído . Nao esqueçamos que, nascido em 1911 e tendo vivido  na juventude a Revoluçao de 30, a questão da República, do Estado para todos,  estava muito presente em sua  figura, diria mesmo que o constituía.  Do soldado ao desembargador , meu pai  se orgulhava de se dar bem com todos os servidores da República.  Quando, nos  duros anos 70  minha irmã e eu  o interrogávamos sobre as acusações de corrupção na polícia, ele se defendia com uma calma desarmante . Dizia que nosso padrão de vida provava que  vivíamos  do produto dos salários dele e de minha mãe.  

Um dos traços que o constituiam era a sociabilidade. Meu pai nao era tímido. Era discreto, tinha uma percepçao  bastante clara da circunstância  nos diversos grupos de que participou e  se  movia em cada um com a delicadeza necessária.

Foi  membro de diversas associações esportivas e intelectuais. Pouco antes de sua aposentadoria começou a frequentar mais assiduamente o Arquivo Público e a Biblioteca Pública  Municipal, onde conheceu a Professora Albertina Fortuna de Barros que  o propôs à  Academia Fluminense de Letras como membro correspondente.  Isso  muito  estimulou o desenvolvimento de sua obra, tendo ele deixado vários livros prontos para edição.  Posteriormente  participou do grupo que fundou o Instituto Histórico e Geográfico de Niterói e posso lembrar-me de sua alegria por ocasião do lançamento do 1° número da revista dessa instituição, o Jornal do Instituto Histórico de Niterói, cuja capa reproduzia  um bico de pena do saudoso Miguel Coelho representando o marco da fudação da cidade.

Sabemos todos que a imagem de uma pessoa só se  constitui quando está ela  já acabada – per-feita- ou seja, após sua morte.  Assim, por último, queria lembrar o aspecto que penso ser o mais importante da personalidade de meu pai, o aspecto que  por si só explicaria  e justificaria essa homenagem que mais uma vez agradeço.

Meu pai poderia ser tomado como  exemplo de um tipo de  cidadão de classe média de Niterói  de  meados do século XX, tipo do qual fazem parte os pais de tantos  nossos amigos.

Filho de familia de poucos recursos, sem história, sem título acadêmico, meu pai, com seu trabalho intelectual,  atravessou a fronteira entre a universidade - o conhecimento  especifico - e a esfera culta da cidade.   Com seu amigo Ary Guanabara,  cuja memória faço questão de honrar aqui,  foi  um intelectual no sentido profundo da expressão, que não indica o conjunto  dos homens  “de colarinho branco », por oposição ao conjunto daqueles  «de macacao azul » mas  indica  sim aquele que  reflete e põe em questão o instituído.  Que acredita na força do pensamento e crê  que « as palavras são obras », como diz o último coro de Prometeu Acorrentado, de Esquilo, a peça que,  no inicio dos anos 70, encenamos no grupo  de teatro Laboratório, da Universidade Federal Fluminense, codirigida por minha amiga Imara Reis que nos honra com sua presença.

Para terminar, vou-me servir de palavras de Darcy Ribeiro  em seu magnifico Maira :

« A casa dos homens ferve de gente: homens, mulheres, crianças, vivos e mortos. Todos os mairuns estao aqui. Os vivos, surpresos , de pé ou sentados, olham o velho taxaua que está acocorado na frente do aroe, bem no meio da casa enorme. Os mortos, entram e saem esvoaçando em círculos que sobem do baíto para o alto do céu.  Só são visíveis aos olhos do aroe, sentado no seu banquinho-gavião de duas cabeças.

Todos estão aqui. Vêm a chamado de Anacã, o tuxaua. (…) Nunca, exceto nos grandes cerimoniais, mulheres e crianças entram no baíto.  Nunca jamais.  Hoje todas elas estão aqui, e também as crianças. Os mortos também estão presentes, como sempre, mas hoje em maior número, entrando e saindo rapidamente.

(…)

Anacã está sepultado. Logo morrerá. A vida deve, agora, renascer. »

Muito obrigada.