Porque uma cidade é sobretudo as pessoas que a habitam, periodicamente apresentarei parisienses. Não necessariamente nascidos em Paris.
Assim Catitu Tayassu nasceu no Brasil. E uma escritora brasileira em português e em francês, pesquisadora em Historia Cultural ( Literatura e Praticas de Escrita), professora de português. Ela coordena em Paris o projeto "Pela vida Afora/ Pour la vie ailleurs" que trabalha questões relacionadas às migrações internacionais ( idéias, pessoas, povos, linguas, talentos, competências ). Atualmente colabora com dois projetos de filmes sobre a "négritude" e a época pos-apartheid na Africa do Sul, coordenados pelo diretor francês Kal Sory Touré. E autora de "Écris-moi", "6ix histoires d'amour, 9euf miracles en Afrique", "Un voyage sur le Fleuve Saint-François" e "En 1949" E trabalha ainda num novo projeto literario, "Ça s'est passé au Faubourg". Sobretudo ela é muito reticente quanto ao interesse deste tipo de apresentação... mas nos ofereceu, de bom grado, uma amostra de sua arte da mistura, perdão, do mélange, quer dizer, do patchwork, isto é, da literatura, se não for mais proprio dizer da escrita.
Cidade luz
Cidade luz
Catitu Tayassu
A cidade reinventou a luz. Não. As luzes reinventaram a cidade e é, por isso, que ela se fez conhecida como cidade luz. Talvez. Contudo, nas cidades orientais perdura um mesmo e antigo ditado, onde predomina a luz o escuro tem sempre lugar. Verdade. No colo obscuro da cidade navega também um rio. Imaginário. Como tudo, quando não se consegue ver, portanto, não se pode racionalizar. Dentro dele sobrevive uma cidade velha. Velhíssima. Meio lúcida e meio caduca, depois de seus 500 anos. Esquecida. Apagada. Sem tombo histórico. Assim, obliterada, ela permanece entre os homens e mulheres de agora, pois a ignorância nasceu de um denso nevoeiro e, num dia de chuva, a caligem dispersou a escuridão. Buscou olhos e corações humanos. Nessa cidade não faltam. Sim. Nessa mesma cidade, dentro do rio, abaixo dos homens, aquém da memória, acima de mim, de ti, de nós, nela, residem palavras obsoletas, as quais se perderiam se não fosse a assistência do meu Tupi Dicionário… Te! Oipotareté jandé ramui recobiar eté jandébe. Jandé poreassu ocar. Jandé có guassu guera. Tirecoaba apó oaé jandé robajara ári. Toerecoaba mocaba, ombaé aé. Máramo s’antã gatu ey’mone? Memé, taé, morerobiarã. Tisaang apó oé Mara jandé iru. Mã retá mororoar ore rupiara. Anhebé oé. Nei, xe aturassap! Mbaé ressé jandé mong’etá? Sé! Mbaé tetiruã ressé. Marã piang ybaca rera? Le Ciel. Le Ciel. Anhebé. Teí ranhebé tessenõi mbaé tetiruã ndebe… Eis aí ! O que quiseram tanto os nossos avós para nós. Nossa querida aldeia [cidade]. Nossas grandes roças [devastadas por largas avenidas com seus cavalos à motor]. Conduzamo-los contra os nossos inimigos. [o pior deles: a selvajaria pelo vil metal, pela ganância, pelo papel moeda] Que levem arcabuzes, suas próprias armas [de fogo e sangue em suas lutas menores]. E porque não serão bastante fortes? [porque não há fraternidade sem liberdade e a tal igualdade tornou-se palavra obsoleta, senão, utópica em sua expressão urbana]. Juntos, diremos, serão impávidos. [rios e mares cotejados por pontes, fronteiras e vizinhanças sem cercas e muros] Experimentemos sua força junto de nós. [eles, no entanto, não nos reconhecem!] São eles que andam a vencer nossos adversários. Assim é. [uma mentira atrás da outra; a invenção da própria história] Eia, conversemos com os que nos procuram. [Pourquoi pas?] Ora pois, meu aliado! [Somos muitos!] Sobre que será nossa conversa? [Conversa prá boi dormir, cigarro de palha, café com água de rio e um samba de Noel ou de Cartola] Sei lá! [Nem eu; já passam das quatro horas; a cidade renasce e nessa cidade, que pena, não há nem galos e nem arautos para o anúncio de um novo dia] Conversaremos, pois, sobre assuntos diversos. [tantos quantos em igual atraso, depois desse tamanho exílio…] Qual o nome do céu? O Céu. Apenas céu. Muito bem. Seja dito em primeiro lugar, entre as várias coisas que te direi. [Ybaca, o céu]. Nessa cidade o céu parece ainda mais inventado. Ele desanoitece sem serenata. Adormece sem poetas de rua, carnaval, mamulengo, cuíca, cavaquinho e Patativa. Ai que saudade do Patativa! Ele moraria no rio subterrâneo, mas não nessa cidade. Claro que sim! Claro que não! Nela não se vêem, quase nunca, as filhas e os filhos do céu! E daí, Patativa era cego! Não. Cego foi quem não viu Patativa. Cego é quem não tem céu nos olhos pra ver. Lua. Estrela. Planeta. Os anéis de Saturno. O amor de Vênus por Marte. As três Marias da Noite. O urso polar e as Estrelas Cadentes. Aqui, apenas, les étoiles montantes do cinema francês. Então, diga lá, como é que essa gente pede um milagre, um desejo, um impossível? Cadentes não há! A bússola dos navegantes também não se vê no céu. A cauda do escorpião? Foi engolida por novo satélite. E as nuvens encobrem a Mãe. A sua, a tua, a nossa. A Estrela D’alva, mãe de todas. Estrelas que ninguém vê. Embora, na cidade-luz vê-se pelo vermelho alaranjado do céu os primeiros sinais de chuva para a manhã do dia seguinte. Bem cedinho. Vê-se, também, uma neblina acinzentada. Poeira ou poluição? É tudo igual. Igualzinho em São Paulo, em Nova York, em Pékin. Tudo igual, não. Nessa cidade há sobretudo diferenças. Vê-se, por exemplo, pontos, luzes e riscos… No meio céu… Arte cósmica deixada pelo ziguezague dos aviões que levam pra longe os que podem voar e os não autorizados pelo país. Por isso, dever ser, pica-pau aqui não vem! Se vem não fica. Pica-pau voa duvidando do vôo. Quem disse e escreveu, foi-se embora. Deixou a terra encarnada. Amigou-se ao céu azul. É conhecido como um Rosa Guimarães, o qual sabia do rio debaixo de cada cidade e, assim, molhava a sua pena com tinta d’água. Água de rio. Água de chuva. Encharcou a sua cidade, a minha, a tua e a de muitos. Gente molhada de ponta à cabeça. Gente pintada com tinta bonita quando de suas palavras sertanejas. Gente branca e mestiça, índia e negra, qualquer uma e todas. Veredas. Gente desenhada por palavra viva e reinventada. Gente cheia de luz. Gente cheia de sombra. Tudo é gente. Cada gente é uma cidade. Um chão entreaberto pelo asfalto. Por onde eu assisto o rio que atravessa essa cidade. Cidade Pedra. Cidade Palavra. Cidade Velha. Cidade Luz.
4 commentaires:
Texto maravilhoso este!
Dou força a esta nova série de "... parisienses não necessariamente nascidos em Paris...", pois já começa com o dedo de Midas... dessa incrível Catitu.
Parabéns!
Nossa, um poema de amor e saudade, um épico à terra nostra, um acalanto a mario, macunaíma, rosa também, claro, e, sobretudo uma poética (lindíssima) do banzo... volta, catitu, volta...:)
beijo,
clara lopez
Feliz Natal e um excelente 2009 é o que desejo sinceramente para você e toda a sua família!
Eliana. Sabe que sou um fã ardoroso e leitor deste seu blogue.
Sei até porque não tem sido muito possível postar novas matérias nele, e, jamais poderia condená-la por isso.
Mas, faço aqui o meu apelo para que assim que possa volte a nos proporcionar o prazer e o privilégio de ler suas brilhantes postagens.
Enregistrer un commentaire