Fomos ver hoje de manha o filme de Ron Howard, sobre a famosa entrevista de Nixon a um apresentador inglês em 1976, que teria acabado de liquidar politicamente o ex-presidente. Fomos de manha porque as sessoes matinais , às 10h30, 11h00, sao muitissimo mais baratas.
Saimos impressionados.
O filme é bem feito, nao ha duvida. Nao tem tempo morto, você nao tira o olho da tela, os atores estao todos otimos.
Mas... que é que esse filme quer dizer? Que dizer, em que sentido foi concebido? Que valores o sustentam?
Em primeiro lugar, sua apresentaçao é mentirosa. A frase sob o titulo o apresenta como o filme sobre a entrevista cujos direitos Nixon teria tentado recomprar. Ora, em duas horas de filme nao so nao se fala nem uma silaba sobre isso como também o personagem Nixon nao da nenhum indicio de que teria essa intençao. Por que falar nisso na propaganda?
O filme começa com a renuncia e a saida do ex-presidente de Washington às 9 da manha. Na Australia, um apresentador inglês constata que apesar da hora matinal, a audiência do espetaculo foi boa, o que significa que Nixon é assunto. Resolve entrevista-lo, move céus e terras para conseguir montar o projeto, cerca-se de uma equipe escolhida a dedo e lança-se ao combate.
Do lado de Nixon, a entrevista é vendida caro. Nixon teria recebido seiscentos mil dolares por quatro dias de entrevistas de 2 horas cada. Além disso, e sobretudo, ele quer uma chance de se explicar, de se defender, de modo a voltar à cena politica. Suas intençoes sao, alias, explicitas demais, patéticas demais. Um pobre homem que nao se conforma com o exilio politico.
Na segunda parte tem-se a entrevista, apresentada como uma luta. Nixon ganha os três primeiros rounds, sua equipe comemora, o lado oposto esta arrazado. No ultimo round Nixon vai à lona e é massacrado. No fim do filme, o inglês e o ex-presidente se despedem em casa deste, a "Casa Pacifica" , muito civilizada e simbolicamente.
A partir do meio do filme uma idéia começou a se formar na minha cabeça: trata-se de um filme a favor de Nixon. Nao me surpreenderia se soubesse que recebeu um aporte qualquer - nao necessariamente financeiro - de uma fundaçao pro-Nixon.
Porque , em primeiro lugar, é um filme que "aproxima" o personagem, humaniza-o e tira a questao do campo das idéias para pô-la no terreno das emoçoes; em segundo lugar porque desloca a questao do julgamento de açoes - a continuidade da guerra, a violaçao do partido democrata - para o campo do confronto entre o velho e o novo, decadência e juventude, amanhecer e entadecer ( é incrivel, essas imagens sao usadas), potência e impotência. A imagem basica é a de um pequeno David - um apresentador de variedades, lutando por um lugar ao sol , para melhor compor o personagem ainda por cima baixinho - contra o grande Nixon, esperto como uma raposa, poderoso e alto como um heroi de John Ford. O espirito aventureiro que faz a América acaba ganhando, mesmo se o entrevistaor é inglês. Ser americano é um estado de espirito. Me segura que eu vou dar um troço.
O que é mais estranho é que, sendo o filme sobre uma entrevista, esta nao aparece. Nenhuma cena. Ao fim, descreve-se sua ultima imagem de um Nixon arrazado, vencido e envelhecido. Por que nao mostra-la? Eu teria gostado de ver a tal imagem.
Mas sobretudo, ha uma malha solta na historia que o ritmo do filme tenta mascarar: por que Nixon perdeu essa batalha?
A primeira parte do filme trata do esforço de Frost para montar seu projeto. Um jovem e seu sonho, etc e tal. Coragem, determinaçao, resistência a pressoes e todo o tralala. Começa a entrevista. Apesar de toda preparaçao de Frost, desde a primeira frase Nixon controla o jogo. Obvio, trata-se de um ex-Presidente dos Estados Unidos da América, é preciso dizer por extenso. Um profissional, estranho seria se ele estivesse perdendo.
Na noite da véspera da ultima entrevista, Frost esta arrazado. Esta no hotel. a namorada sai para comprar uns hamburgers (literalmente). Justamente neste momento de solidao devido apenas ao acaso, quem telefona? Nixon em pessoa. Que, estranhamente, na véspera da ultima batalha de uma luta tao importante nao so para si mesmo como para seu campo, esta sozinho. E mais: esta bêbedo!
E possivel isso? Alguém com mais de 18 anos pode acreditar numa coisa dessas?
Muito bem, o velho bêbedo, sustenta um monologo diante de seu jovem e desperto antagonista no qual mostra que se vê nele: sao ambos saidos das classes populares, ambos esforçados, ambos em busca de recohecimento e do reconhecimento das classes altas. Isso os identificaria. Nixon conta a Frost casos que dao a este as idéias que o farao , no dia seguinte virar o jogo. Traduçao: nas trevas da noite, movido por seu inconsciente liberado pela bebida - 'stamos em plena cerimônia iniciatica, o guerreiro se entrega aos espiritos - Nixon passa o poder a Frost, sagra-o cavaleiro e pede que ele o envie descansar no Wahala.
Quando a namorada chega com os sanduiches Frost esta animadissimo, liga para Washington e, aproveitando-se da diferença horaria manda buscar um documento nao publicado na Biblioteca do Congresso. Que documento? Que palavras de Nixon fizeram com que ele se lembrasse desse documento? O ritmo do filme nao deixa o espectador raciocinar. Com essa muniçao ele desestabiliza um Nixon que, nao so nao se lembra de ter telefonado a Frost na vespera - claro, se nao o autor do filme tomava um processo da familia Nixon - como , estranhamente, no espaço de uma noite ficou curvado, lento, com o rosto vagaroso de quem começa um processo de Alzheimer. As questoes de Frost nao sao mais agudas a partir do tal documento super importante - nao consigo sequer me lembrar qual era a questao. Mas Nixon perde o rebolado. A coisa fica preta, sua equipe interrompe a entrevista, leva-o para a sala de apoio, previne-o dos erros que ele esta cometendo. Ele se insurge contra seu estafe e afirma estar fazendo o que quer fazer. Nixon contra Nixon. A confissao publica dos pecados cometidos. Um quaker querendo salvar sua alma.
A entrevista termina, Nixon tornou-se um velhinho no espaço de uma noite. Curvado, passo hesitante, sorriso timido. Comemoraçoes no campo oposto. Um tempo. A visita final de Frost a Nixon , a passagem de poder simbolica. Ganhou a democracia , ganhou a imprensa livre, ganharam os jovens, o exercito do rock. Eu, heim, Rosa!
Sai quase ofendida. Ha quantas geraçoes nos o povo somos enganados por historias como essa? Quando é que a "esquerda", "os democratas", " os liberais", "os bons", em suma , vamos parar de achar que somos os inteligentes e que "eles" sao burros? Se "eles" fossem burros e "nos" inteligentes, o mundo ja seria muito diferente, nao? Quando é que se vai contar que um presidente é uma ponta de um iceberg? Que é um feixe de forças e nao um monolito? Que nao interessa que seja velho, moço, paralitico ou "coureur de jupons"? Que nao é por acaso que os americanos se interessam tanto por filmes sobre a Mafia? Sabe aquele personagem que aceita ser preso, que reconhece todos os crimes, que aceita ser condenado à morte ou à prisao perpétua enquanto, na audiência do tribunal um representante do "chefe" apoia sua familia?
Fiquei pensando que quereria ver um filme sobre o backstage dessa entrevista sim. Mas o verdadeiro. Por que Nixon perdeu? Quem o entregou ? No interesse de quem,dentro de seu proprio campo, ele perdeu? Fiquei pensando que essa historia deve estar na cabeça de muita gente, que essa investigaçao deve estar rolando e que o filme é uma tentativa de responder a ela...