Esta é a historia de uma mae, um filho e um médico. Um médico nao, perdao, um professor de medicina.
A mae esta ha muitos anos em Paris e pensava que falava francês. O filho é pequeno para a idade. Nada muito flagrante mas a maioria dos meninos, e nao so dos meninos, quer-se alinhar com a maioria, ao menos pelo tamanho. Como a maioria das maes também quer que seus filhos estejam - ao menos - alinhados com a média, desde bebê ele é acompanhado por uma endocrinologista que o pesa e mede de seis em seis meses, num dos principais hospitais especializados em pediatria no centro de Paris. E constatou-se até agora que esta tudo normal, ou seja, trata-se de uma criança que sera um adulto de baixa estatura. Sem problemas.
Ocorre que tem mae que é louca, todo mundo sabe disso. Louca pelos filhos, até ai nada demais. Mas... a amiga, a mae do amigo do filho, a tia dela, todo mundo da palpite sobre a estatura do menino e a louca da mae aceita todos:
-Mas como, esse menino so tem 1,50? E você nao toma uma providência?
- Conheço um médico que...
- O filho de ... era pequenininho, mirradinho... e olha, tomou hormônio receitado pelo doutor fulano e hoje esta um rapaz lindo, alto...
- Você vai deixar seu filho nessa situaçao?
Os filhos de todas as amigas ja têm quase 1, 70. O conselho amical decide que é preciso que o menino tome o hormonio do crescimento para ficar alto, bonito e charmoso, confiante em si e pronto para a vida enfim. A mae nao aprecia Clint Eastwood? Moço, velho, velhissimo? A mae aprecia. Muito.
Mas ha também a turma contra o hormônio. Pode provocar câncer de intestino quando ele for adulto... nao esta testado... pode provocar alteraçoes no corpo... O pai é contra, cada um tem o tamanho que tem, ora essa ... pra que mexer no que esta bom do jeito que ta? A mae se lembra dos baixinhos charmosos, seus amigos de juventude Cesar Saade e Fernando de Suely em Niteroi, Paulinho do Edson de Manhuaçu, seu compadre Jorgedu de Cecilia, Andy Garcia, Dusty Hofman, o rei Pacino... se lembra da historia do nariz da mae do diabo... Resolve resolver a questao na proxima consulta.
A médica faz o exame semestral e constata, a partir da radiografia da mao da criança e de seu historico, que sua idade ossea é inferior à idade cronologica e que ha espaço para muito crescimento. Mas, seu crescimento é normal. A mae insiste no hormônio. A médica responde que dado que nao ha nenhuma anomalia , a Seguridade Social nao autorizara o tratamento, que é muito caro e reservado aos que têm problemas. Mas que a mae consulte o Professor, o chefe da equipe pois so ele podera autorizar um tratamento nessas condiçoes. A mae quer saber se é perigoso pois no Brasil é um tratamento corrente. Qual é a opiniao médica da médica? Ela responde que em sua opiniao nao fara mal mas que a mae consulte o Professor.
A mae telefona para marcar a consulta com o Professor. No hospital, so ha consulta para setembro mas ele da consultas particulares no proprio hospital, num outro horario. E com outro preço: 100 euros, contra no maximo 42 da consulta no hospital. Mas a atendente diz que o menino esta entrando na puberdade, nao se pode esperar três meses. A mae marca a consulta particular para a semana seguinte.
A sala de espera esta cheia. A mae se sente meio mal. Todas as outras crianças têm problemas evidentes. Muito evidentes. Filho e mae conversam animadamente em voz baixa, aproveitando a possibilidade rara em Paris de estarem juntos sem estarem deixando de fazer nada.
O médico vem chama-los e os introduz na sala de consulta. Um homem entre 52 e 60 anos, muito bem tratado, a pele lisissima, moreno como um mediterrâneo, grandes olhos vivos. Belo homem. Mais pra baixo. Por qualquer misteriosa razao a maioria dos endocrinologistas que a mae conhece é constituida por homens mais pra baixos.
O médico sorri lindamente - belo sorriso de belos dentes alvos - e pede licença à mae para examinar o sexo do filho e ver a puberdade. Faz uma piadinha boba com o menino, tentando pô-lo à vontade, constata que a puberdade começou. Volta e folheia o dossier. Segue-se entao o seguinte dialogo:
- Que altura tem a senhora? (se bem que essa informaçao esteja no dossier)
- 1,57m
- E o pai do menino?
- 1, 79m
- Meus parabéns!
- O quê? Como assim?
- Ha uma diferença de 22 cm entre a senhora e seu marido.
- ?....?
- Normalmente a diferença maxima de altura entre os casais é de, no maximo, 15 cm. As pessoas procuram alinhar-se. No seu caso, o casal constituiu-se a partir de outros critérios. Parabéns!
-????....
Sorriso imbecil no rosto da mae. O médico estara brincando? Ele nao para de sorrir.
- Com que idade a senhora menstruou pela primeira vez?
- Euh ... com 11 anos.... acho eu...
- Cedo, muito cedo!!!
- Nao, doutor, no Brasil é essa a idade normal...
- Nao senhora, no Brasil a idade normal é de 12 anos e 3 meses, ah, ah, ah!!!
- Ah, entao eu menstruiei com 12 anos, lembro-me de ter menstruado exatamente na época normal, nem antes nem depois...
- Ahahah! As pessoas estao habituadas a ir a médicos. Quando se vêem frente a frente com um professor ficam desconcertadas e nao sabem o que dizer. Um professor sabe tudo! Da França, da Russia, do Japao, do Brasil. Tudo! Eu sei tudo! No Brasil as meninas têm a primeira menstruaçao aos 12 anos e 3 meses, hahaha!!!
Ele estara brincando? A mae nao sabe o que pensar. Os franceses adoram ironias e auto-ironias. Por que sera que ela tem a impressao de que ele fala sério?
O Professor poe-se a ler o diagnostico que vai escrevendo no dossier: desenvolvimento normal, nenhum tratamento a iniciar, proxima consulta daqui a seis meses.
- Doutor, entao meu filho nao tomara o hormonio do crescimento?
- Minha senhora, primeiro eu escrevo o meu diagnostico. Depois a senhora diz o que a senhora prescreve que, de qualquer jeito, nao tem a menor importância.
A mae pensa que a polidez do médico é que nao tem a menor importância e que ela esta la para ouvir sua posiçao cientifica a respeito do caso de seu filho. Espera pacientemente que ele termine. Quando ele levanta o olhar em sua direçao ela retoma:
- Professor, eu queria ...
- Esta encerrado, minha senhora. A senhora ouviu bem: nenhum tratamento. Boa tarde. Vou vê-lo de novo daqui a seis meses. Se houver alguma anomalia reveremos o caso. Atualmente é normal. Boa tarde.
Ele estende à mae o recibo da consulta.
- Professor, eu queria lhe perguntar ...
- Minha senhora, ao fim de seu crescimento seu filho tera em torno de 1,70. Eu sou Professor. Eu recebo crianças de toda a Europa. Vêm crianças de toda a parte, até da Russia para se consultar comigo. A Seguridade Social so paga tratamentos para crianças que terao apenas 1,60. Como sou magnânimo e acho que 1,60 é pouco, atendo também aqueles que terao no maximo 1,62. Mas corro riscos por isso. Eu infrinjo a lei de meu pais.
A mae pensa que essa foi dose. Esse "meu pais, ô sua meteque", doeu na mae. Mas mae é mae e ela insiste.
- Doutor ( ponha seu titulo de Professor la onde estou pensando), no Brasil muitos médicos receitam hormonio de crescimento a meninos no mesmo caso de meu filho e eu queria saber...
- Estou-lhe dizendo, minha senhora, que a Seguridade Social nao paga!
O sorriso de muitos dentes desapareceu.
- ... sua opiniao, quer dizer, sua posiçao cientifica a respeito...
- A Seguridade Social nao paga, minha senhora! Eu correria o risco de ser preso! E contra as leis de meu pais!
Ele esta fazendo de proposito, nao é possivel...
- Doutor, o senhor é contra o uso do hormônio de crescimento?
- A Seguridade Social nao paga!!!
Ele esta em pé, perto da porta. A mae continua sentada diante da mesa, o mais calmamente possivel, a bolsa aberta sobre os joelhos. O filho em pânico ao lado, sem saber para onde olhar.
- Doutor, eu queria sua opiniao médica sobre o hormonio. ( a mae frisou o "médica")
- Minha senhora, eu so posso lhe dar uma opiniao médica, eu nao sou florista.
- Doutor, o senhor até agora esta falando como gestor, nao como médico! Qual é sua opiniao cientifica? O hormônio fara mal a meu filho?
- Eu nao estou falando como gestor, estou dizendo que a Seguridade Social nao paga porque seu filho tera uma altura considerada normal. Atualmente, sobre 500 000 crianças de 13 anos na França, 100 000 têm a estatura de seu filho e têm a mesma expectativa de crescimento que ele. Um quinto de sua faixa etaria, minha senhora. E uma populaçao imensa, a senhora compreende? A Seguridade Social nao paga e nao pode pagar.
- Mas o hormonio fara mal a meu filho?
- Minha senhora, na França isso é um crime, a senhora esta me pedindo que cometa um crime! A Seguridade Social nao paga!
- Doutor, se eu achasse um médico nos Estados Unidos que se propusesse a dar hormônio a meu filho o senhor desaconselharia?
- Minha senhora, nos Estados Unidos as maes dao hormônio do crescimento a crianças perfeitamente normais para que elas se tornem manequins. Mas, na França, a Seguridade Social nao paga.
- Bem, Doutor, se eu achasse esse médico o que o senhor acharia?
- Minha senhora, se a senhora achar esse médico, nos Estados Unidos, no Brasil ( na pqp , pensou ele) fuja dele!
A mae nao acredita que finalmente conseguiu uma meia resposta a sua pergunta.
- Obrigada, Doutor, essa é a resposta a minha pergunta.
O médico esta parado diante da porta aberta. A mae esta sentada preenchendo o cheque.
- Minha senhora, a senhora dê o cheque a minha secretaria. Eu nao recebo cheques.
- Desculpe, doutor, como o senhor me deu o recibo, pensei que estaria esperando o cheque.
A mae se levanta. O professor lhe estende meia mao mole. Nenhum sorriso. A mae , ao contrario, oferece-lhe seu sorriso numero 8 , tipo " senhora discreta e bem educada dirigindo-se a profissional de modo formal e impessoal". O filho cumprimenta o professor de modo particular:
- Boa tarde, sua caneta é muito bonita.
- Oh, é apenas uma caneta normal, que vaza um pouco... E uma Montblanc...
A mae esta preenchendo o cheque quando ouve o médico que se dirige à sala cheia:
- Senhoras e senhores, queiram desculpar meu atraso. Na verdade ha pessoas que falam demais, que acham que têm de criar caso por causa de dois centimetros. Queiram desculpar.
Pano rapido.