Mais si je t’aime, gare à toi !
Todas as cidades são livros à espera de seu leitor mas poucas sabem disso tão bem quanto Paris. Aqui, em cada canto se encontra uma referência histórica, uma alusão literária, um convite ao passante para ver no cenário personagens reais ou fictícios. Monumentos, construções, estátuas, fontes, placas: Paris exibe orgulhosamente seu caráter artificial, quer dizer, construído pelos homens, que nela deixam suas marcas. Assim, o mais despretensioso passeio é sempre rico de informações, que levam à reflexão.
Todas as cidades são livros à espera de seu leitor mas poucas sabem disso tão bem quanto Paris. Aqui, em cada canto se encontra uma referência histórica, uma alusão literária, um convite ao passante para ver no cenário personagens reais ou fictícios. Monumentos, construções, estátuas, fontes, placas: Paris exibe orgulhosamente seu caráter artificial, quer dizer, construído pelos homens, que nela deixam suas marcas. Assim, o mais despretensioso passeio é sempre rico de informações, que levam à reflexão.
Na rive gauche, por exemplo, saindo pelo cais Des Grands Augustins, da praça de Saint Michel em direção ao museu D’Orsay, pode-se tomar a rua Des Grands Augustins. Na esquina com a rua de Savoie encontramos o edifício onde foi pintada Guernica. O que evoca, evidentemente, toda a mítica em torno de Picasso. Sua arte, claro, sua genialidade, mas também sua coragem (ou suas bravatas) , sua auto confiança inquebrantável (ou seu egocentrismo)... Historias que se contam como lendas: um oficial alemão diante de Guernica, teria interpelado o artista: “- Foi o senhor que fez isto?”E Picasso, imperturbável: “- Não senhor, foram os senhores.” A história é boa mas a verdade é que, sobre o homem Picasso não há unanimidade... e sua atitude durante a guerra não recebe somente elogios...Diz-se mesmo que essa história, como outras a seu respeito, teria sido inventada por ele mesmo... num, genial, convenhamos, golpe publicitário. Há até os que especulam que sua proeminência artística deveu-se em grande parte à necessidade de os americanos encontrarem, no pós-guerra, uma figura européia publicitariamente adequada à propaganda de reconstrução do continente. O pintor, na força da maturidade, amando exibir seu corpo e seus jovens amores seria a imagem ideal da velha Europa sempre potente.
De fato era uma atraente figura esse minotauro, que devorava aquelas que se deixassem prender no labirinto de sua sedução... como Dora Maar, que morava justamente na rua de Savoie e que foi alias quem encontrou o grande atelier de que o artista precisava para realizar sua obra.
Dora Maar nasceu Henriquetta Theodora Markovitch em 1907, de um pai iuguslavo e uma mãe francesa. Já era pintora e fotógrafa e já fora amante de George Bataille quando em janeiro de 1936, conheceu Picasso na varanda do café Les Deux Magots, no boulevard Saint Germain, point intelectual desde o século XIX. Consta que o pintor teria ficado impressionado com a beleza da moça de olhos e cabelos escuros. Paul Éluard fez as apresentações e pouco tempo depois já se formava um novo par. Dora tinha 29 anos, Picasso 55 e uma relação em curso com Marie Thérèse Walter. Criada na Argentina, Dora pode lhe falar naturalmente em espanhol, o que o encanta. Mas parece que mais encantada está ela, que, esquecendo quase que totalmente a pintura, dedica-se então à fotografia, aproveitando influências surrealistas e realizando colagens de fotos. Mas que, sobretudo, documenta fase por fase a criação de Guernica assim como faz vários retratos hoje célebres de seu amante, registrando sua vida em comum. Picasso a retrata em 1937 : “Retrato de Dora Maar”.
Sua relação dura até 1944. A ruptura a deixa arrasada. Afasta-se da fotografia, a que só voltará esporadicamente, e dos amigos , enclausurando-se no seu apartamento parisiense de onde só sairá no verão, para sua casa de campo. Sempre só, entrega-se a uma religiosidade sem limites. Os habitantes do vilarejo onde fugia do calor parisiense se lembram da senhora sempre solitária que, elegantemente vestida, elegantemente demais para a região, assistia à missa todos os domingos, sem permitir aproximações, aparentando mesmo dificuldades mentais. Voluntariamente pondo-se fora de cena. “- Depois de Picasso, só Deus,” teria dito a alguém. A quem? As lendas correm no mundo das artes... Picasso vivia então seu romance com Françoise Gilot, nascida em 1921... e Dora cai no esquecimento.
Décadas depois, um colecionador arrisca-se a procurá-la, desejando expor alguns de seus trabalhos. Ela o recebe num apartamento que impressiona o visitante pelo abandono em que se encontra, embora sua proprietária não tenha dificuldades materiais. São de outra ordem seus problemas e o estado de sua casa reflete bem seu desinteresse pelo mundo a sua volta. Ela vive num outro espaço, no tempo de Picasso, e sem ele não se interessa mais por sua arte, arquivada em pastas sob a cama.
Em 1997 ela morre de câncer no Hôtel Dieu, o hospital na ilha de la Cité, onde dera entrada sozinha. Quando seu apartamento é aberto há uma certa comoção no meio das artes. Contém ele um pequenino museu Picasso. Como uma adolescente, Dora guardara lembranças de seu amor: desenhos feitos a caneta sobre toalhas de papel de bares e restaurantes, pequenos objetos confeccionados a partir de maços de cigarros ou de caixas de fósforo, pequenas esculturas em arame... além de esboços e dois retratos seus pintados pelo mestre, orçados, respectivamente, em 10 e 20 milhões de francos: “Dora Maar na praia” e ”Mulher chorando”. Uma parenta longínqua , que nunca ouvira falar dela, recebeu sua herança.
Será essa uma história de amor? Essa história quase incrível? Por que razões uma artista moça, rica, culta, experiente e bem relacionada ter-se-ia deixado medusar pelo touro\toureiro malaguenho num roteiro fatal que parece hoje tão claro em todas as suas etapas? Ou ao contrário, teria sido ele o aprisionado que, ao se libertar, deixa sua sombra presa na teia de uma Penélope depressiva, que procurava justamente um motivo para seu bordado de melancolia? Como saber dos motivos da escolha amorosa de cada um?
Pessoalmente, quanto a histórias românticas, prefiro as solares, em que os dois envolvidos são ativos, parceiros nas corridas do amor e da vida. Como a história de Carmem e Dom José. Como as que se podem adivinhar nos toureiros e touradas de Picasso.
7 commentaires:
Lindo texto, Eliana.
Lindas recordações de Paris me trouxeram... Dos tempos em que rodava eu e os meus queridos Virginia e Gustavo, com o Ronaldo, ‘avec le Guide Michelin’ debaixo do braço, a nos mostrar os cantos da Cidade-Luz.
Os cantos que ele, na sua riqueza d'alma já nos reservava. Não aqueles mostrados apenas pelos “guias turísticos”, mas cantos que falam, respiram, suspiram uma cidade, um clima... um canto, enfim!!!
Assinei Jong(á), no commentaire acima porque sei o quanto os franceses pronunciam os "Á", ou os "Ô". Por exemplo: Mari(á) e Antoni(ô).
Amanhã estou partindo para Minas. Campanha política. ‘Choses de la vie’, de publicitário, ‘vous conaitre c'est histoire’.
Bom, devo ficar alguns dias fora do ar. Digo, até que me reaprume, dito que vou trocar de cidade, de computador, etc, e estar envolvido em um trabalho que nos deixa pouco tempo de “respiro”. ‘Toutfoi’s’, você sabe bem como é a vida de um “propagandista”.
Uma boa história e muito bem contada! Trágica, como eu gosto, porque só essas merecem ser reescritas, né não? :)
beijo,
vera queiroz
Só tenho a dizer: 'mon dieu', apesar de ser 'agnostique' (é bem coloquial na tragédia)... mas postei estes comentários na matéria errada.
Queria postá-los naquele "Uma amiga pediu um roteiro de Paris" ou algo no gênero.
Mil desculpas Eliana, mas, talvez o ideal fosse removê-los desta postagem e coloca-los na outra.
Eliana, estive um pouco ausente nas últimas semanas, porque tive um "agravamento" da minha saúde, em função do tratamento com homeopatia que faço. Queria dizer que o seu blog está lindo, azul da cor do céu...:)
E vc me fez reviver uma sensação de prazer eterna que é "flanar" pelas ruas de Paris, onde respiramos história e arte pelos poros....Vou voltar para ler completamente os últimos deliciosos posts....
Abraços!
Sua máquina futurista já está em 2069, é bom nesse tempo? :)
bjo,
idem
Postei um comentário sobre as fotos lindas, que eu ainda não tinha visto, e pedia alguns comentários sobre elas, mas parece que ele se perdeu. Então, de novo: as fotos estão lindas, só agora as vi, mas precisa dizer que lugares são esses, por que vc os escolheu (eu já ia pedir uma relação de lugares de que vc gosta, que não sejam necessariamente turísticos, mas sei que esse último é difícil..>), quem é a moça da foto e quem é a moça que tira as fotos, ela é muito boa.
beijos,
tia vera
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