A filha tem 15 anos e esta começando a se interessar por cinema, quer dizer, quer conhecer cinema. As referências, as marcas. Nesta ville-lumière, ela quer, logico, conhecer o cinema francês.
A primeira reaçao da mae é Urgh! Seu santo pai repetia rindo que a expressao "cinema americano" era um pleonasmo. E isso no momento em que o Cine-Arte UFF estava em todo o seu esplendor , quando a filha dele disputava um lugarzinho nas sessoes de meia-noite sempre cheias ...
A filha se impacienta com a reaçao infantil da mae e a obriga a voltar ao presente. Cinema na França é coisa muito séria, os apoios governamentais sao enormes. Industria cultural no sentido proprio da expressao. Que filmes ela TEM de ver?
- Seu avô dizia...
-Mae, você ja disse isso mil vezes, nao tem graça nenhuma...
- Filme francês é que nao tem graça nenhuma...
-Mae!
- Ok, Ok: A bout de souffle, de Godard. Um filme sobre um rapaz que foge da policia e é traido pela namorada...
- Mae, você esta com estrelas nos olhos! Esse filme tem de ser bom!
(Desfilam pelos olhos da mae as surpresas da paixao que mata e da covardia. Mas como assim? E as caretinhas de Belmondo morrendo na Praia de Icarai, nao, nos Champs Elysées. Acossado. )
- Mae, como é que você diz que os franceses nao sabem fazer filme e você esta com essa cara... se eu fizesse um unico filme que fizesse isso com as pessoas... Godard deve ser um gênio...
(O café no pé-sujo ao lado depois da sessao so pra esticar a noite. Nao havia onde ir depois. Tudo fechado. Uma cidade que dormia.)
- La vie devant soi, de Moshé Mizrahi. A judia Madame Rosa, alias Simone Signoret, e Momô, o garoto que até os sete anos nao sabia que era arabe porque ainda nao tinha sido insultado... (Insultado por ser arabe? Na patria da fraternidade? No super novo Cinema 1 da Moreira César isso parecia estranho. ) Momô que se vê obrigado a abandonar seu cachorro querido e compreende de repente por que sua mae o abandonara...
-Mas você que nao gosta de filme triste...
- Mon oncle d'Amérique, de Alain Resnais, ai, acho que estou dando um tiro no pé te citando esse ai...
-...?
- E um elogio da desobediência, um filme meio complicado pruma mae recomendar... um nao à piedade, um "nao confie em ninguém" ... sei la. Mas é preciso ver.
(Saimos mudos do Cinema 1 de Copacabana, meu amigo Clovis Levi e eu. Niteroi vista do outro lado parecia dormir mais profundamente ainda.)
A filha é estudiosa, esta anotando num caderninho.
- E Les Guichets du Louvre, de Michel Mitrani, sobre a rafle du Vel d'Hiv, a prisao dos judeus parisienses no verao de 42 pela policia francesa.
- Mamae, você esta de provocaçao!
- Nao estou nao! E você nao sabe do mais interessante, o Cine Arte UFF projetou esse filme no ano de sua produçao, com a presença do diretor. O filme tinha sido proibido na França, por atentado à imagem francesa durante a Ocupaçao. Até muito pouco tempo atras a questao da colaboraçao francesa com os alemaes era mito por aqui. Oficialmente aqui so tinha "resistente".
- Mae, nao começa!
- Tô terminando. Imagine que foi a primeira vez que ouvi falar nisso, eu e muito boa companhia... pra nos - e olha que éramos informadinhos... pra nos os inimigos dos judeus eram so os alemaes e assim mesmo nao todos, so os poucos nazistas, poucos mas que tinham tomado o Estado...
-Ai ai, la vem você...
- Mas o mais importante do filme nao é isso. E mostrar como os judeus estavam enganados com a França, com sua propria capacidade de resistência, com sua propria força. E um filme a favor do individuo diante do grupo, da pra entender?
- Hum... mais um pra fechar a lista:
- Pra fechar a lista? Entao la vai o mais belo filme do mundo, de antes, durante e depois. O classico dos classicos. Pra se ver uma vez e lembrar pra sempre ... Tantos temas ... Shakeaspeare francês...
-Nao decola, mae!!!
- Les enfants du paradis, de Marcel Carné.
( Garance sorri e lembra da mae. A risada de sua mae: "Quando minha mae ria, tudo ria. E a herança que recebi dela. Seu riso". Que melhor herança pode deixar uma mae a sua filha? )
- Fala de quê, mamae?
- E um filme sobre a transmissao, de mae pra filha...
A primeira reaçao da mae é Urgh! Seu santo pai repetia rindo que a expressao "cinema americano" era um pleonasmo. E isso no momento em que o Cine-Arte UFF estava em todo o seu esplendor , quando a filha dele disputava um lugarzinho nas sessoes de meia-noite sempre cheias ...
A filha se impacienta com a reaçao infantil da mae e a obriga a voltar ao presente. Cinema na França é coisa muito séria, os apoios governamentais sao enormes. Industria cultural no sentido proprio da expressao. Que filmes ela TEM de ver?
- Seu avô dizia...
-Mae, você ja disse isso mil vezes, nao tem graça nenhuma...
- Filme francês é que nao tem graça nenhuma...
-Mae!
- Ok, Ok: A bout de souffle, de Godard. Um filme sobre um rapaz que foge da policia e é traido pela namorada...
- Mae, você esta com estrelas nos olhos! Esse filme tem de ser bom!
(Desfilam pelos olhos da mae as surpresas da paixao que mata e da covardia. Mas como assim? E as caretinhas de Belmondo morrendo na Praia de Icarai, nao, nos Champs Elysées. Acossado. )
- Mae, como é que você diz que os franceses nao sabem fazer filme e você esta com essa cara... se eu fizesse um unico filme que fizesse isso com as pessoas... Godard deve ser um gênio...
(O café no pé-sujo ao lado depois da sessao so pra esticar a noite. Nao havia onde ir depois. Tudo fechado. Uma cidade que dormia.)
- La vie devant soi, de Moshé Mizrahi. A judia Madame Rosa, alias Simone Signoret, e Momô, o garoto que até os sete anos nao sabia que era arabe porque ainda nao tinha sido insultado... (Insultado por ser arabe? Na patria da fraternidade? No super novo Cinema 1 da Moreira César isso parecia estranho. ) Momô que se vê obrigado a abandonar seu cachorro querido e compreende de repente por que sua mae o abandonara...
-Mas você que nao gosta de filme triste...
- Mon oncle d'Amérique, de Alain Resnais, ai, acho que estou dando um tiro no pé te citando esse ai...
-...?
- E um elogio da desobediência, um filme meio complicado pruma mae recomendar... um nao à piedade, um "nao confie em ninguém" ... sei la. Mas é preciso ver.
(Saimos mudos do Cinema 1 de Copacabana, meu amigo Clovis Levi e eu. Niteroi vista do outro lado parecia dormir mais profundamente ainda.)
A filha é estudiosa, esta anotando num caderninho.
- E Les Guichets du Louvre, de Michel Mitrani, sobre a rafle du Vel d'Hiv, a prisao dos judeus parisienses no verao de 42 pela policia francesa.
- Mamae, você esta de provocaçao!
- Nao estou nao! E você nao sabe do mais interessante, o Cine Arte UFF projetou esse filme no ano de sua produçao, com a presença do diretor. O filme tinha sido proibido na França, por atentado à imagem francesa durante a Ocupaçao. Até muito pouco tempo atras a questao da colaboraçao francesa com os alemaes era mito por aqui. Oficialmente aqui so tinha "resistente".
- Mae, nao começa!
- Tô terminando. Imagine que foi a primeira vez que ouvi falar nisso, eu e muito boa companhia... pra nos - e olha que éramos informadinhos... pra nos os inimigos dos judeus eram so os alemaes e assim mesmo nao todos, so os poucos nazistas, poucos mas que tinham tomado o Estado...
-Ai ai, la vem você...
- Mas o mais importante do filme nao é isso. E mostrar como os judeus estavam enganados com a França, com sua propria capacidade de resistência, com sua propria força. E um filme a favor do individuo diante do grupo, da pra entender?
- Hum... mais um pra fechar a lista:
- Pra fechar a lista? Entao la vai o mais belo filme do mundo, de antes, durante e depois. O classico dos classicos. Pra se ver uma vez e lembrar pra sempre ... Tantos temas ... Shakeaspeare francês...
-Nao decola, mae!!!
- Les enfants du paradis, de Marcel Carné.
( Garance sorri e lembra da mae. A risada de sua mae: "Quando minha mae ria, tudo ria. E a herança que recebi dela. Seu riso". Que melhor herança pode deixar uma mae a sua filha? )
- Fala de quê, mamae?
- E um filme sobre a transmissao, de mae pra filha...
6 commentaires:
Nossa, muito bom o post! Não lembro de metade desses filmes, acho que não vi mesmo vários, eu era meio alienadinha nessa época :)
Muito bom, de novo!
beijo,
clara lopez
Mas se bergman era dessa época, eu via os filmes com devoção, acho que sempre fui uma pessoa trágica...:)
bjo,
vera queiroz
Querida Clara, querida Vera,
Obrigada pelos comentarios.
Clarita, você nunca foi "alienadinha", muito pelo contrario, se você nao viu esses filmes nessa época é porque você nao era de Niteroi...(rsrs), onde se tinha de inventar mesmo...quem viveu, viu..
Vera querida, sabe que talvez você tenha encontrado mesmo uma auto-definiçao? Um personagem de intensidade bergmaniana.
Bises,
Eliana
Olá,Eliana!
Ana me passou a dica do blog e aqui estou curtindo a leitura dos seus posts. Sobre o "Les Enfants du Paradis", uau, que lembrança eterna! Vi o filme em duas partes no então Cineclube Estação Botafogo, anos 80... Acho que já contei sobre isso naquele encontro super agradável no apartamento da Pasquale e do João. Quanto à linda Maria, imagino sua emoção de mãe apontando caminhos para as inúmeras descobertas que ela ainda fará. Um beijo e até breve aqui no Rio.
Querida Edwiges,
Obrigadissima pela visita.
Desta vez vamos com certeza nos encontrar no Rio.
Um beijo,
Eliana
Que bom que voce lembrou de tantos filmes-marca dentro da filmografia francesa! Lembrei ainda de "Mouchette", do Robert Bresson, que me marcou muito.
Mas à galeria de monstros sagrados do cinema francês, com Godard à frente, eu sugiro acrescentar ainda o meu querido François Truffaut, com o seu olhar amoroso e humano.
Não esquecendo que ele escreveu, junto com Godard, o roteiro do “Acossado” (A bout de souffle)
A lista dos filmes dele que mais amo começa com LES QUATRE-CENTS COUPS (Os incompreendidos), que levou ao desenvolvimento do personagem de Antoine Doinel.
Interpretado pelo mesmo ator, Jean-Pierre Léaud, teve continuidade no curta ANTOINE ET COLETTE, e deu origem à trilogia:
L’AMOUR À VINGT ANS, BAISERS VOLÉS e DOMICILE CONJUGAL
O que dizer entao do sensível e poético L’ARGENT DE POCHE, lindo !
E seguem-se FAHRENHEIT 451, JULES E JIM, LES DEUX ANGLAISES E LE CONTINENT, LE DERNIER MÉTRO, LA FEMME D’À CÔTÉ.
E finalmente, LA NUIT AMERICAINE, aquele filme particular, especialmente amado pelos que estão envolvidos com o fazer cinema, esse mundo doido e mágico, um pouco incompreensível aos outros.
Adorei o blog! Voce aceitaria uma contribuição de fotos? como se faz?
um beijo
Vera
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