Admiro a ficção de Ruffato mas penso que seu discurso em Frankfurt foi um equívoco.
Textualmente, trata-se de um discurso desequilibrado. Sobre 20 parágrafos, o primeiro propõe a questão, gastam-se 18 com uma revisão da história do Brasil e sobra apenas um para o desenvolvimento da pergunta-tema do parágrafo inicial, que não é respondida adequadamente. Os 18 parágrafos do meio como que a soterram, tornando sem importância sua resposta.
Pois, à guisa de resposta Ruffato afirma que, talvez ingenuamente, acredita que a literatura possa mudar as pessoas e talvez um país. Como? Isso ele não diz, limitando-se a citar sua própria experiência. E mesmo assim, sem maiores explicações. Ora, a literatura mudou sua vida como a de Machado, de Lima Barreto, de Carolina Maria de Jesus, de Gilka Machado, de Adélia Prado... Não é preciso fazer literatura “social” para ter a vida transformada pelo uso da palavra. Mas, mesmo assim, já que ele está citando a si mesmo como exemplo, como é que a literatura mudou sua vida? Que diferencial apresentou a vida desse filho de um pipoqueiro semianalfabeto e de uma lavadeira analfabeta para que seu destino tenha sido afetado pela literatura? Ele também não diz.
Termina ele seu discurso com a afirmação de que o destino do homem na terra é ou deveria ser a felicidade. E que, por isso, se alimenta ele de utopias. Quererá ele dizer que a busca da utopia ( o lugar que não existe) é a felicidade? E que é que tem a literatura com a felicidade? Ler literatura torna as pessoas mais felizes? Nada menos certo!
Estrategicamente, seu discurso é igualmente equivocado. E mesmo prejudicial, ouso dizer.
De fato, quando o autor apresenta-se como talvez ingênuo em suas crenças, acerta em cheio. Foi a ingenuidade de suas crenças que o levou ao equívoco de seu discurso. Porque pensa ele que, porque está numa feira literária, está num fórum humanitário, no qual se teria o dever de denunciar as mazelas de uma terra em transe. Um fórum no qual decisões políticas e humanitárias poderiam ser tomadas desde que seus participantes tomassem conhecimento de dados até então desconhecidos.
Ora, nada mais equivocado.
Em primeiro lugar nenhuma das alegações de Ruffato, por discutíveis que sejam, é nova. Todos os estrangeiros envolvidos com literatura conhecem muito bem e há muito tempo a história do Brasil, sobretudo em suas dificuldades. Pretendem mesmo, em algumas universidades e redações, ensiná-la aos brasileiros, algumas vezes enfatizando mesmo suas passagens mais sórdidas. O colonialismo, como todos sabemos, não se limita aos aspectos materiais de um povo mas sobretudo aos imateriais. Como se na Europa e nos USA nunca tivesse havido guerras, discriminações, deportações, imigrações forçadas. Como se atualmente a Europa não estivesse atravessando um enorme período de intolerância racial e cultural, como se o sexismo e o racismo dela tivessem sido erradicados, como se os partidos de direita e de extrema direita não estivessem em ascensão, como se a crise econômica europeia e americana tocassem igualmente ricos e pobres, como se as prisões do hemisfério norte estivessem igualmente cheias tanto de ricos como de pobres. Com seu discurso Ruffato contribui para o sentimento de “civilização” do hemisfério norte, que precisa, sobretudo atualmente, ver “là_bas” a selvageria que não quer admitir grassar em seu seio. Os selvagens, os violentos, somos nós, os brasileiros, os do hemisfério sul. O hemisfério norte não precisa de nós para ver-nos assim, como sempre nos viram, como os que precisam ser catequizados, civilizados, objeto de “missões”. Mas, bons alunos dessa catequese, dos processos civilizatórios, nos sentimos obrigados a gritar a cada vez – justamente – que nos sentimos homenageados: - Olhem para nós com suas luzes, com sua civilização. Não somos capazes de viver sem sua tutela, somos infantis, não podemos resolver nossos problemas. Pedimos seu julgamento, sua reprovação. Aceitaremos o castigo que nos for imposto. Ingenuidade.
Ingenuidade. Ninguém liga! No Mediterrâneo volta e meia soçobra um barco de imigrantes ilegais que arrostam todas as dificuldades para fugir da miséria na África. Morem dezenas, às vezes centenas. Ninguém liga. As fronteiras estão fechadas e assim continuam. No espaço Schengen ciganos são empurrados de uma cidade para outra, de um país para outro, sem direito a trabalhar, obrigados à mendicância ou ao furto. Ninguém liga. Da Africa sub saariana chegam fotos maravilhosamente produzidas mostrando crianças esquálidas e a miséria mais absoluta. Ninguém liga. Do leste europeu vêm meninas aumentar as redes de prostituição nas cidades europeias, famílias inteiras dormem nas ruas, crianças, adultos, velhos. Ninguém liga.
Por que alguém ligaria para denúncias feitas sobre um país que apresenta numa feira literária 70 convidados oficiais? Para denúncias feitas sobre um país que, justamente, está envidando esforços para reparar erros históricos?
O discurso de Ruffato além de não poder produzir nada de bom para o Brasil, reforça pois a atitude colonialista dos europeus e americanos a nosso respeito, baixa nosso valor simbólico, nos prejudica, em suma, de maneira concreta.
A feira de Frankfurt é, como o nome diz, um mercado. Vendem-se e compram-se livros. O Brasil está aí, sobretudo como vendedor, daí essa enorme delegação que o povo brasileiro está pagando. Como a matéria-prima desse produto é o imaginário, o sonho, vendem-se aí, nações ou ao menos países. Nesse lugar, o que é preciso é uma estratégia de venda. Porque vender a literatura brasileira é pôr em evidência o povo brasileiro, é valorizar a vida dos brasileiros, sua luta por superar suas dificuldades. Sua capacidade de “dar a volta por cima”, mesmo que em duas, três gerações. Já se vendeu o Brasil como o país do sexo fácil, das praias paradisíacas. Já foi também a terra do amor e da liberdade, lembro da carta escrita por Polanski a Jorge Amado, agradecendo-lhe o sopro de liberdade que recebera com seus livros. Que tal propô-lo agora como a terra da resiliência? O país onde filhos de lavadeiras (ou estimadas agregadas de famílias abastadas, é conforme o biógrafo) podem tornar-se amigos de filhos do patriciado a ponto de fundarem juntos a Academia Brasileira de Letras? Onde o filho de um pipoqueiro pode tornar-se ficcionista e ser escolhido para falar por seus pares na maior feira de livros do mundo?
Ruffato parece ignorar que seus livros não são bons pela matéria que narram mas pela mestria com que são narrados. Que literatura não se faz com bons sentimentos ou boas intenções (primeira aula de Teoria Literária). E também (sobretudo? ) que não estamos mais na periferia, o centro se alargou. Estamos agora brincando “na cours des grands”. E que o que temos de ter é coragem.