Um professor brasileiro que mora em Paris escreveu recentemente na imprensa que os franceses quereriam virar a pagina DSK. Minha amiga Clara me manda o link para seu artigo e me pergunta por que esse caso esta interessando tanto. Assim, volto ao assunto.
Em primeiro lugar não é verdade que os franceses queiram esquecer DSK. Este escândalo - que poderia ser mais um entre muitos - nao sai das manchetes uma semana depois dos fatos e isso representa alguma coisa.
Na verdade trata-se de um caso que mobiliza fantasias e medos os mais diversos e em varios niveis, dentre os quais vou identificar alguns:
1- Em primeiro lugar a figura do acusado: Dominque Strauss Kahn é uma figura infinitamente simpatica em termos midiaticos. Basta olhar suas fotos. Passa a imagem do inteligente bom carater "bon vivant". O tipo do sujeito com autoridade suficiente para comandar e tranquilizar os comandados (e os eleitores), graças a sua propalada inteligência e aos postos que ocupou sucessivamente. E, ao mesmo tempo, o tipo do sujeito "simples", com "os mesmos gostos de qualquer um de sua geração", ou seja, de facil identificaçao se nao com as classes populares, cao menos com as classes médias, que aqui sao numerosas.
O fato de ser reputado como mulherengo nao atrapalhava até entao, talvez até ajudasse na tal identificaçao. Afinal, mulherengos foram também, pelo menos, Félix Faure e Mitterrand.
Era considerado como o provavel proximo presidente da republica pois encarnava nesta França que esta mudando celeremente e sem saber direito como, a sintese ideal entre tradiçao e modernidade: de um lado, as tradiçoes das boas escolas, dos titulos acadêmicos, dos gostos e "pecadilhos" tao nacionais; de outro, a modernidade de sua experiência internacional, de seu trânsito sobre o Atlântico, de sua relativa independência com relaçao ao PS. Enfim, tinha tudo o que oferece Sarkozy, em melhor, além dos valores do PS o que, num pais que preza a alternância dos partidos no poder, deve ser levado em conta.
Além disso, é casado com uma das heroinas do mundo audiovisual francês, a bela, inteligente e apaixonada Anne Sinclair que, depois dos quarenta anos, abandonou uma brilhante carreira de jornalista politica para casar-se com ele em segundas nupcias ja que, tendo ele um cargo publico, estabelecia-se o conflito de interesses entre as duas carreiras.
Assim, sua queda nao é apenas particular, é a queda de uma figura mitificada, na qual muitas esperanças tinham sido depositadas.
2- Em segundo lugar tem-se a natureza do crime de que ele é acusado. O estupro é o horror de toda mulher e o grande divisor de aguas entre homens e mulheres. Como uma pessoa desse calibre pode ser suspeita de cometer um crime desses? Como os defensores de DSK muitas vezes entraram pelo velho caminho machista segundo o qual certamente a vitima "teria provocado ou até desejado" o ataque sofrido e pondo em relevo as aptidoes de sedutor do acusado, varias associaçoes de mulheres estao-se manifestando em protesto ao que consideram um acobertamento machista da violaçao dos direitos basicos da mulher.
2- Em terceiro lugar surpreende o modo como procede a justiça americana diante de uma acusação. Do ponto de vista francês (e do meu) , a presunçao de inocência nao esta sendo respeitada nem estao sendo atribuidos os mesmos direitos a ambas as partes. Qualquer que seja o resultado de um processo desse tipo, o acusado ja pagou carissimo antes mesmo do tribunal. Ao passo que a acusadora - a vitima presumida - tem sua identidade preservada.
Por outro lado, ha os que acham genial e maravilhoso que a justiça americana trate um poderoso da mesma forma que trata um pequeno vendedor de drogas . Sem falar na inveja basica do povinho de todas as classes sociais, que adora ver um "barao" algemado e humilhado.
3- A historia em si é simbolica, quase mesmo demais. Num pais movido a literatura - mesmo os jornais diarios sao cheios de referências literarias - é impossivel nao se ver nessa historia o idolo de pés de barro, David e Golias, Edipo e a sucessao de gloria e infâmia e mesmo um La Fontaine no qual o leao nao fosse salvo mas destruido pelo ratinho.
4-Nao se pode esquecer também que tanto ele quanto sua mulher sao judeus e que ele seria provavelmente, o primeiro judeu presidente da republica francesa na qual as tensoes entre pro e antisemitas sao ainda vivas.
5- No entanto, na minha percepçao, o que mobiliza fundamentalmente, mesmo se por vezes inconscientemente, é a suspeita de complô que nao sai e nao pode sair da cabeça de ninguém. Cada um tem sua hipotese para esse hipotético complô as noticias publicas não cessam de alimenta-las. Os jornais franceses traduzem as reportagens americanas e cada vez mais aparecem detalhes no minimo estranhos, por exemplo: a primeira pessoa que noticiou o fato na França, por Twiter, foi um militante do UMD, direita francesa. Nao teria ele imediatamente alertado os lideres de seu partido? Todos mundo se surpreende também da liberdade com que a policia foi chamada sem que nenhuma personalidade politica ou diplomatica fosse avisada. Tratava-se afinal da prisao do Diretor Geral do FMI, que , em principio tinha status de diplomata e poderia ter imunidades diplomaticas. Além do mais é francês em territorio americano. Parece quase "igualdade demais diante da lei" para que se possa acreditar verdadeiramente. E a direçao do Sofitel, nao foi chamada quando o alarme foi dado internamente? Que gerente de hotel (e de grande hotel), desejaria um escândalo desses sob sua responsabilidade se nao tivesse recebido um sinal verde? Que gerente de hotel nao teria - antes de chamar a policia - consultado a direçao geral do hotel e mesmo a direçao do conglomerado, em Paris? Afinal, se o homem se hospedava nesse hotel nao era com certeza porque suas intalaçoes eram melhores que as dos demais mas porque sua suite era garantida como segura, à prova de espionagem. Nessas condiçoes , o gerente do hotel nao teria procurado se garantir junto a seus superiores? Nao teria tido, por reflexo, a necessidade de interrogar sua empregada, no minimo para saber se a pessoa que prestava a queixa era realmente a empregada contratada (trata-se de um grande hotel). E quanto ao que se teria passado dentro da suite, nao é estranho que uma mulher de 1,80 nao tenha deixado marcas de mordidas em lugares estratégicos? E como é possivel que um homem sem arma obrigue uma mulher à pratica de sexo oral? Tenho também eu uma idéia sobre como as coisas podem ter-se passado mas vou da-la no proximo post.
Enfim, o que assusta é que parece estarmos vivendo dentro de um filme de espionagem. O problema é que, de figurantes desse filme, todos nos sentimos, prestes a passar a protagonistas. A suspeita de que esse homem pode estar sendo vitima de um complô é aterrorizante porque se o que lhe acontece acontecesse com alguém menos rico, poderoso e bem casado essa pessoa, eu ou você, por exemplo, estariamos no fundo de uma prisao novayorquina. Talvez pelos proximos 75 anos. E o sentimento de insegurança que se infiltra em cada um de nos e que faz com que esse caso tenha tamanha importância.