Como a maioria, a casa tinha sala de jantar. So as mais ricas tinham também sala de estar, com poltronas. Na sala de jantar havia a mesa com as cadeiras. Dois moveis baixos onde se guardavam toalhas, guardanapos, a louça dos dias de festa e os talheres nas gavetas. Uma cristaleira onde ficavam os copos ( que nao eram de cristal), a licoreira com os copinhos, a jarra de refresco com seus copos altos, a compoteira. O radio. O piano. E duas estantes de livros, duas carteiras de escola para as crianças fazerem os deveres, uma cadeira de balanço e o telefone.
Na parede principal, de frente para a porta de entrada, havia o Coraçao de Jesus e o Coraçao de Maria. Reproduçoes em papel com bela moldura de madeira. Imagens de frente, com fundo claro, nas quais as figuras, de busto, pareciam olhar diretamente o observador. Todo mundo , todo o mundo conhecido tinha o Coraçao de Jesus e o Coraçao de Maria na sala. As imagens variavam mas havia um codigo secreto: as figuras estavam sempre de frente sobre fundo claro e a representaçao era neutra, quer dizer, as figuras nem sorriam nem tinham olhar triste. Seu olhar era direto.
Havia casas em que a imagem era outra, sempre a mesma: Jesus na montanha, meditava, olhando o vale. O fundo do quadro era sombrio, mostrando um crepusculo. Ao longe parecia armar-se uma tempestade. Jesus, mostrado de corpo inteiro, trajava uma tunica branca, e sentava-se sobre uma pedra. Sua expressao era melancolica. O conjunto era sentimental. Os donos dessas casas eram espiritas. Por qualquer misteriosa razao o tipo de estampa religiosa funcionava como um codigo: o catolico, dizia minha mae, nao é sentimental. Nessas casas também nao havia o Coraçao de Maria.
Nao se punham de qualquer jeito esses quadros na parede. Era preciso a cerimônia da entronizaçao. Quando uma pessoa se casava, fundando um novo lar ou quando simplesmente mudava de casa, vinha o padre para promover a entronizaçao dos Coraçoes de Jesus e de Maria. Vinham os vizinhos para a cerimônia, que consistia numa oraçao seguida pelo terço. No fim o padre benzia todo mundo e a casa, aspergia agua benta e pendurava os quadros na parede. Pronto, a casa ja estava presidida por Jesus e contava com a benevolência de Maria.
Acima da mesa de jantar ficava o quadro da Santa Ceia. O crucifixo podia ficar ou acima da porta de entrada, de frente para a sala ou ... acima da cama do casal ( segundo minha filha, para contribuir com o controle da natalidade).
No Domingo de Ramos recebiamos na igreja as palmas que guardavamos o ano todo. Durante as tempestades cobriamos todos os espelhos ( que nao eram muitos) e queimavamos um ramo.
Por duas vezes Nossa Senhora de Fatima foi nos visitar. Nao em pessoa pois nao éramos idolatras. Em representaçao. Tratava-se de uma imagem quase do tamanho de uma pessoa, que teria vindo de Portugal e estaria dando a volta ao mundo. Deve ter-se perdido porque la em casa ela esteve duas vezes. As familias se inscreviam na igreja para receber a visita . No dia marcado vinha uma procissao trazendo a imagem num andor. A sala ja estava preparada para recebê-la, um dos moveis tendo sido transformado em altar, forrado pela melhor colcha ou pela melhor toalha de jantar da casa. Os vizinhos traziam flores. Evitavam-se as velas por medo de incêndio. Durante a permanência da imagem havia terço em casa todos os dias à noite, com a presença dos vizinhos. A imagem ia embora também em procissao. E nao se podia falar em "Santa". Maria nao era "Santa", era Santissima. Cantavam-se os hinos: " Com minha mae estarei/ Na santa gloria um dia/ Junto à Virgem Maria/ No céu, triunfarei./ No céu, no céu/ No céu triunfarei". "Coraçao santo/Tu reinaras/ O nosso encanto/ Sempre seras./ Jesus amavel,/Jesus piedoso, /pai amoroso,/ fragua de amor! / A teus pés venho/ Se tu me deixas/ Sentidas queixas/ Humilde expor". As melodias eram em tom menor, lamurientas, sentimentais. Minha mae nao gostava. Repetia que o catolico nao é sentimental e onde se viu o coraçao de Jesus ser o encanto dos homens? Sentimentalidades. Por outro lado ela gostava do Hino de um Congresso Eucaristico que se tinha realizado no Rio. Bem alegre, melodia viva, convidativa em letra e musica: " De todo canto/ Vinde, correi!/ Foi posta a mesa/ De nosso rei./ Do céu desceu a chuva/ Da terra nasceu o grao/ A vinha deu a uva/ Do trigo fez-se o pao". Minha mae nao acreditava em sentimentos, acreditava em ações.
11 commentaires:
Sua descrição é um retrato fiel da religiosidade de um Brasil, que, de alguma maneira, todos conhecemos. Recordo de minhas irmãs vestidas de “anjinhos” no colégio de freira em que estudavam. Da minha primeira comunhão. De centenas de velas acesas naquela igreja perto do Túnel Novo, em direção a Copacabana. E daquele domingo, fim de tarde, calorento... um melancólico pôr-do-sol, procissão nas ruas, quando morei no interior...
Diametralmente oposta, mas qualquer forma uma demonstração da força desta metalinguagem, lembrei da famosa frase de Luis Buñuel: “Graças a deus eu não acredito em deus”, que, aliás, em seu surrealismo consegue uma síntese conclusiva do “submundo latino”.
Voce descreve com perfeição de onde voce vem, querida, e de onde vem o amor a graciliano, já estava tudo dado pela mãe, né não? De todo modo, suas lembranças são bonitas, saudáveis, a gente percebe que há afeto, embora não sentimentalismo, no seu relembrar, é legal isso. Claro que tenho também uma história de religião na infância e pré-adolescência, mas ela não é sem crises e confusões internas.
um beijo,
clara lopez
Amei o espaço.
Volto sempre!
Muito interessante o comentário de Clara Lopez. Há no seu texto, Eliana, uma dose evidente de sentimento... um sentimento que vem do fundo de si e que nos envolve por completo.
Não é à toa que é uma conhecedora da língua portuguesa, mas, para além disso, para além do estilo, vê-se sinceridade em sua postagem.
Dá gosto ler um texto assim!
Muito bacana o seu blog...e que saudade me deu desta cidade.
Abraço
Jonga,
Um dia pensei que nao posso ficar chateando meus filhos contando coisas. E no entanto sao coisas que nao queria que se perdessem...
Bises,
Eliana
Clarita querida,
Nunca tinha pensado na relaçao entre Graciliano e minha mae... Quem sabe você tem razao?
A literatura é um oficio muito doido mesmo, nao?
Beijos,
Eliana
Ola Ligia,
Obrigada pela visita e pelo elogio. E um grande prazer ter leitores que nao se conhece pessoalmente. E saber que eles voltam entao... Por outro lado, acho que nos "conhecemos" de um outro blog, o de Kovacs, nao?
Um abraço e até mais,
Eliana
Oi, Leila,
Muito obrigada também pela visita e pelo elogio ao blog.
De fato esta cidade é linda. E literaria. Provoca a escrita. Nos também nos "conhecemos" de outro blog, creio que do blog de Jonga, nao?
Espero que você volte outras vezes.
Um abraço,
Eliana
Eliana, ma belle.
Tô gostando de ver e ler seu caderno de Paris. É um caderno Graciliano. Belo.
E passa lá no http://nomadismocelularwordpress.com, que você vai gostar de ler o PDF em inglês ou em português de um escritor americano que discute o celular no espaço público, este em franco declínio.
Bisous a você a Ronaldo e às crianças,
Mari-Jô Zilveti
Oi Mari-Jo,
Prazer em vê-la por aqui.
Imagine você que desde ontem estou no nomadismo celular lendo exatamente esse texto... que devo terminar hoje.
Um beijo,
Eliana
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